O termo canabinoide refere-se a qualquer composto químico capaz de interagir com os receptores canabinoides do Sistema Endocanabinoide (SEC) de mamíferos, promovendo efeitos biológicos por meio dessa ligação. Esses compostos são classificados em três categorias principais:
- Fitocanabinoides – originários da planta Cannabis sativa.
- Endocanabinoides – moléculas endógenas produzidas pelo organismo de mamíferos.
- Canabinomiméticos sintéticos – substâncias produzidas em laboratório que mimetizam os efeitos dos canabinoides naturais, com ou sem similaridade estrutural.
O precursor biossintético dos principais fitocanabinoides é o Ácido Canabigerólico (CBGA), que, sob a ação de enzimas específicas, dá origem aos ácidos Tetrahidrocanabinólico (THCA), Canabidiólico (CBDA) e Canabicromênico (CBCA). Estes ácidos sofrem descarboxilação térmica ou oxidativa, convertendo-se em seus compostos neutros e farmacologicamente ativos.
Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC)
O Δ⁹-THC é o principal componente psicoativo da Cannabis sativa, caracterizado como um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2. A ativação do CB1, predominantemente expressa no sistema nervoso central, induz efeitos como euforia, alterações cognitivas, analgesia, catalepsia e aumento do apetite. Já a ativação do CB2, localizado principalmente em células imunes, está relacionada a propriedades anti-inflamatórias e imunomoduladoras.
O THC foi isolado e caracterizado por Mechoulam e Gaoni em 1964, marco fundamental para a pesquisa moderna em canabinoides. Além dos efeitos psicotrópicos, seu potencial terapêutico inclui uso em dor crônica, espasticidade, náusea induzida por quimioterapia e anorexia associada ao HIV.
Canabidiol (CBD)
O CBD, apesar de não ser psicoativo, apresenta um perfil farmacológico complexo, com atuação indireta no SEC. Ele modula a sinalização endocanabinoide ao inibir a FAAH (enzima responsável pela degradação da anandamida), aumentando os níveis dessa endocanabinoide.
Além disso, o CBD interage com múltiplos alvos moleculares:
- TRPV1 (receptores vaniloides): moduladores da dor e inflamação.
- GPR55: envolvido na proliferação celular e na modulação do sistema imunológico.
- Receptores 5-HT1A: relacionados à regulação do humor e ansiedade.
- Receptores GABA A: influenciam o tônus inibitório neuronal e o sono.
Estudos clínicos demonstram sua eficácia em epilepsias refratárias, como a síndrome de Dravet, e seu potencial em transtornos de ansiedade, psicose, distúrbios do sono, dor neuropática e doenças inflamatórias. Também estão em investigação os efeitos antitumorais e neuroprotetores, principalmente em doenças neurodegenerativas.
Canabinol (CBN)
O CBN é um produto de oxidação do THC, acumulando-se naturalmente com o envelhecimento da planta e a exposição à luz e ao oxigênio. Apresenta baixa afinidade com os receptores CB1 e CB2, sendo considerado um agonista parcial.
Seus efeitos terapêuticos descritos incluem:
- Sedação e indução do sono: potencial ansiolítico e hipnótico em estudos pré-clínicos.
- Analgésico e anti-inflamatório: eficácia em modelos animais de dor crônica e distúrbios miofasciais.
- Antimicrobiano: atividade contra bactérias multirresistentes.
- Redução da pressão intraocular: sugerido para o manejo do glaucoma.
Estudos iniciais indicam que o CBN pode potencializar os efeitos sedativos do THC ou mesmo modular seus efeitos excitatórios, embora mais pesquisas clínicas sejam necessárias. Modelos animais indicam que o CBN pode reduzir a dor em condições como fibromialgia e disfunções temporomandibulares.
CanabinoCanabigerol (CBG)
O CBG é derivado da descarboxilação do CBGA e representa um fitocanabinoide não psicoativo com amplo espectro terapêutico. Atua como agonista parcial do receptor CB2 e modulador de múltiplos alvos moleculares, incluindo:
- Receptor α2-adrenérgico (α2AR): implicado na resposta ao estresse e na regulação da pressão arterial.
- Receptor 5-HT1A: antagonismo com implicações em ansiedade e depressão.
- Modulação de canais TRP e PPARs: envolvidos em inflamação, dor e metabolismo.
O CBG também apresenta propriedades anti-inflamatórias importantes, como a inibição de citocinas pró-inflamatórias e de óxido nítrico. Possui ainda atividade antibacteriana contra cepas Gram-positivas e promissora aplicação oncológica por modular a proliferação celular e potencializar a quimioterapia. Além disso, estudos sugerem seu papel na regulação do metabolismo e da sensibilidade à insulina, o que pode indicar utilidade no manejo da obesidade e da síndrome metabólica.
Outras propriedades terapêuticas descritas para o CBG incluem:
- Neuroproteção: efeitos promissores em modelos de doenças neurodegenerativas como Huntington, Parkinson e esclerose múltipla.
- Regulação da pressão intraocular: potencial uso no tratamento do glaucoma.
- Analgesia: atuação nos gânglios da raiz dorsal e vias nociceptivas periféricas.
Tetrahidrocanabivarina (THCV)
O THCV é um agonista inverso/antagonista seletivo do receptor CB1, análogo natural não psicoativo do THC, podendo prevenir os efeitos psicológicos do THC. Também ao contrário do THC, o THCV produz efeitos hipofágicos tanto em modelo animal em jejum como em não-jejum, e se concluiu que o THCV tem grande potencial para o tratamento da obesidade. Em doses baixas, atua como antagonista dos receptores CB1, sendo potencialmente útil na supressão do apetite e no controle do peso corporal. Já em doses mais altas, pode se comportar como agonista parcial.
O efeito mais forte observado foi nos níveis plasmáticos de glicose e insulina, bem como nos triglicerídeos hepáticos, em modelo animal. Assim, o THCV pode ser útil para o tratamento da síndrome metabólica e/ou diabetes tipo 2, isoladamente ou como tratamento adjuvante com outras opções terapêuticas.
Além disso, estudos sugerem efeitos neuroprotetores, ação anticonvulsivante e propriedades ansiolíticas.
Para além dos canabinoides
Esses fitocanabinoides representam apenas alguns dos mais de 120 canabinoides identificados na Cannabis sativa, cada qual com mecanismos de ação específicos e aplicações clínicas potenciais. Além dos fitocanabinoides, a Cannabis sativa contém uma variedade de outros constituintes bioativos que contribuem para seus efeitos terapêuticos. Entre eles, destacam-se os terpenos e terpenoides, compostos aromáticos voláteis com propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, ansiolíticas e antimicrobianas, que atuam sinergicamente com os canabinoides em um fenômeno conhecido como efeito entourage. Os polifenóis, como os flavonoides, apresentam potente ação antioxidante e neuroprotetora. Alcaloides, embora em menor quantidade, podem participar da modulação de vias neuroquímicas. Já as ceras, lipídios e triglicerídeos presentes na matriz vegetal influenciam a absorção e a biodisponibilidade dos compostos ativos. Essa complexa interação entre os diversos componentes da planta reforça a importância da abordagem fitoquímica integral no desenvolvimento de terapias à base de Cannabis, respeitando a sinergia natural dos seus constituintes.
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Referências
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